domingo, 20 de junho de 2010

Morte de Tim Lopes mnibiliza todo o Brasil

Morte de Tim Lopes denuncia o poder dos traficantes

De bermuda, com uma velha camisa amarela e sandálias, como um típico carioca do morro, o jornalista Tim Lopes, 51 anos, saiu da sede da TV Globo no dia 2 de junho de 2002 para fazer a sua última grande reportagem investigativa. Levava uma microcâmera escondida dentro da pochete presa à cintura para filmar um baile funk na favela da Vila Cruzeiro, uma das 12 favelas integrantes do morro conhecido como Complexo do Alemão, no bairro da Penha, subúrbio do Rio de Janeiro. Ele havia recebido uma denúncia dos moradores da favela de que nos bailes patrocinados por traficantes acontecia a exploração sexual de jovens e o consumo de drogas. Os moradores pediam ajuda.

Aquela seria a quarta vez que Lopes subiria à favela para realizar esta reportagem. Nas duas primeiras, fez o reconhecimento de área. Na terceira, levou a microcâmera, mas as imagens não foram consideradas boas o suficiente para sustentar a denúncia - ele não tinha imagens do baile. Por isso, voltou ao local. A combinação era que o motorista, contratado pela TV Globo especialmente para o serviço, o pegasse no morro às 20h. No horário previsto, entretanto, Lopes avisou que precisaria de mais tempo para completar o trabalho. Pediu que o buscasse novamente às 22h. O motorista voltou como foi combinado, mas o jornalista não apareceu.

Marcelo Moreira, 32 anos, chefe de reportagem da TV Globo no Rio de Janeiro, conta que, quando o motorista ligou para a redação avisando que o jornalista não havia aparecido, foi recomendado que ele esperasse por Lopes até a meia-noite. “A questão do horário é rígida, mas ele foi num baile funk, não tinha horário para acabar, e fomos levados a crer que o baile tinha se estendido por causa do jogo do Brasil (durante a Copa Mundial de Futebol)”, explica Ali Kamel, 40 anos, diretor-executivo de Jornalismo da TV Globo.

Moreira chegou mais cedo na redação, por volta das 4h, devido ao jogo, que começaria às 6h. “Quando desconfiamos que algo de errado havia acontecido, ligamos para todo mundo”, disse Moreira.

O que se seguiu foi o início da busca de Lopes que culminou, uma semana depois, com o anúncio de sua morte e a troca de farpas entre autoridades locais e nacionais na tentativa de encontrar os culpados e pela ineficiência do poder público diante do poder estabelecido pelos traficantes de drogas.

A morte de Lopes foi confirmada depois da prisão de Fernando Sátiro da Silva, o Frei, e Reinaldo Amaral de Jesus, o Cabê, dois integrantes da quadrilha do traficante Elias Pereira da Silva, o Elias Maluco, um dos líderes do grupo criminoso Comando Vermelho, que detém o poder no Complexo do Alemão. Os depoimentos dos presos indicam que o jornalista pode ter sido identificado pelos traficantes como sendo como o autor da reportagem “Feira de Drogas” veiculada pela TV Globo em agosto de 2001. Na reportagem, Lopes filmou, com uma microcâmera escondida, a venda de drogas nas ruas do morro do Alemão. Depois que sua reportagem foi ar, foram presos traficantes e o negócio foi interrompido por um tempo, causando prejuízos aos narcotraficantes.

Segundo os depoimentos colhidos pela polícia, os traficantes teriam levado o jornalista da favela Vila Cruzeiro para a favela da Grota, onde estava Elias Maluco. Ali teriam feito um “julgamento” para decidir se o matariam. Ele foi barbaramente espancado e torturado. Seu corpo foi esquartejado e queimado em pneus numa gruta, método conhecido como “microondas” e muito usado por traficantes para matar policiais ou informantes e eliminar rastros que podem servir de provas contra seus assassinos.

A prisão de Elias Maluco, que passou a ser chamado de “bandido mais perigoso do Rio de Janeiro”, e dos demais assassinos do jornalista foi definida como uma “questão de honra” por representantes do governo do Rio do Janeiro. Durante uma semana, a polícia realizou incursões diárias no morro, em busca do corpo do jornalista e dos culpados, ou de testemunhas que possam levar aos assassinos. Até o dia 17 de junho de 2002, foram identificados nove integrantes da quadrilha de Elias Maluco que teriam participado do assassinato de Lopes. Dois estão presos.

Ângelo Ferreira da Silva, preso em 13 de junho, confessou que estava no carro Palio que teria transportado Lopes da Vila Cruzeiro para a favela da Grota, onde estava Elias Maluco. Segundo Silva, Lopes estava amarrado e ferido à bala na perna quando foi colocado no carro. Ele relatou as cenas de tortura pelas quais passou o jornalista, mas disse que não estava presente quando Lopes morreu. Revelou também os nomes de outros dois envolvidos no assassinato.

Elizeu Felício de Souza, o Zeu, preso em 14 de junho e apontado como um dos seguranças de Elias Maluco que teria assistido à execução de Lopes, confessou que comprou gasolina e diesel em um posto de gasolina perto da entrada da favela Nova Brasília, que integra o Complexo do Alemão. Zeu disse ter entendido que um inimigo da quadrilha teria o corpo queimado, mas não confirmou se era o de Lopes.

A busca continua

A Rede Globo, através de suas retransmissoras em todo o país, do canal a cabo, do jornal e da rádio pertencentes ao grupo, iniciou uma campanha para encontrar os “Inimigos do Rio” - como passaram a ser identificados os acusados da morte de Lopes.

Os meios de comunicação têm ajudado a divulgar o telefone do Disque-Denúncia, um sistema de denúncia anônimo patrocinado pelo governo do Estado e o Movimento Rio de Combate ao Crime, que dividem o custo de uma recompensa de R$ 50 mil para quem der informações sobre o paradeiro de Elias Maluco. Cartazes com o número do Disque-Denúncia - (21) 22531177 - estão colados nos vidros traseiros dos ônibus que circulam pela cidade. A polícia não descarta a hipótese de que Elias Maluco esteja foragido em outra favela ou mesmo em outro Estado.

Segurança do repórter

A morte de Lopes revelou várias irregularidades. Jornalistas e policiais têm várias críticas mútuas. Uma delas é quanto ao tempo que a TV Globo demorou para comunicar a polícia sobre o desaparecimento do jornalista. A polícia reclama que só foi avisada do desaparecimento do jornalista por volta das 8h da manhã seguinte. “Mandamos uma pessoa fazer queixa na delegacia, e ela só chegou às 8h. Mas, antes disso, já havíamos ligado para o posto da Polícia Militar na favela”, conta o chefe de reportagem da TV Globo, Marcelo Moreira. “Entretanto, a primeira incursão da polícia na favela só ocorreu às 13h do dia 3, segunda-feira”.

Outros criticam a falta de segurança para resgatar o repórter, em caso de emergência durante a reportagem. “Tim não era de correr riscos, se tivesse sido ameaçado, tenho certeza de que não voltaria ao local”, diz Moreira.

Ali Kamel, diretor-executivo de Jornalismo, lembra que o evento que Lopes estava filmando era público, e o jornalista não se fez passar por bandido ou morador - não requeria, portanto, o mesmo esquema de segurança de quem vai se infiltrar num prédio ou num local fechado. Uma testemunha disse à TV Globo que viu Lopes ser levado para fora do baile e espancado. Kamel ressalta que o jornalista não estava infiltrado, estava disfarçado de cidadão carioca. “Ali, qualquer um seria morto se estivesse com um bloco de notas e o recado é que os traficantes não querem mais a imprensa no morro porque prejudica os negócios”, acredita.

A forma como o jornalista morreu, ao entrar na área de favela sem nenhuma proteção, gerou uma nota da comissão do Sindicato dos Jornalistas encarregada de acompanhar as investigações. “Nos últimos dias, muitos de nós ouvimos nas ruas, e até mesmo de fontes, comentários de que Lopes teria sido irresponsável por estar numa favela dominada pelo tráfico nas condições em que estava. Ou mesmo que teria sido levado a isso por seus chefes”, diz o texto. E acrescenta: “A essas pessoas, que talvez desconheçam a rotina do nosso trabalho, lembramos que a realidade do tráfico de drogas nos morros só é conhecida de todos, e muitas vezes inclusive da polícia, porque jornalistas vão lá para contar”.

A TV Globo formou uma comissão interna para reavaliar suas coberturas diante da violência no Rio de Janeiro e as medidas de segurança. Outras empresas também começam a se proteger. A partir do assassinato de Lopes, alguns repórteres estão subindo os morros do Rio de Janeiro com coletes à prova de balas. Até o uso de carros blindados está sendo estudado. Em artigos de jornais e programas de televisão, profissionais da imprensa questionam o uso da microcâmera e a ética nas investigações.

O fato também gerou seminários organizados pelo Sindicato dos Jornalistas e pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI) sobre condições de segurança para os jornalistas.

Alexandre Medeiros, jornalista de 41 anos com 20 de trabalho, era amigo de Lopes. Estava escrevendo com ele um livro sobre o samba e a Mangueira, e interrompeu sua participação no projeto Casa das Artes da Mangueira porque se sente ameaçado. “Antigamente, identificar-se como jornalista era garantia de um tratamento diferenciado. Hoje, é como estar na mira de um tiro”, disse. Depois da morte de Lopes, Medeiros apareceu mais de uma vez na televisão pedindo providências da polícia para prender os culpados.

Ineficiência do sistema

O traficante Elias Pereira da Silva, o Elias Maluco, principal acusado da morte de Lopes, já havia sido preso, condenado e julgado em 1996. É considerado o mais cruel dos traficantes e o principal líder do grupo Comando Vermelho em liberdade. Sua ficha registra que, em 1993, ele humilhou e executou quatro policiais do 9º Batalhão da Polícia Militar. Como vingança, os policiais invadiram a favela Vigário Geral e mataram 21 pessoas. Também é acusado da invasão dos morros dos Macacos e do Pau da Bandeira, quando seis pessoas morreram, três ficaram feridas e os moradores foram expulsos de suas casas.

É creditado a ele ainda um audacioso plano de libertação de outro traficante, Adair Marlon Duarte, destruindo uma das paredes da prisão com uma carreta, e o seqüestro do estudante Eduardo Eugênio Gouveia Vieira Filho.

Apesar de tudo isso, Elias Maluco foi colocado em liberdade condicional em 2000, através de um habeas corpus. Segundo o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Marcus Faver, o juiz teria concedido o habeas corpus por excesso de prazo, para evitar a acusação de constrangimento ilegal.

O papel da polícia no morro

O chefe da Delegacia de Homicídios, Paulo Passos, e o delegado Carlos Henrique Machado, que participou das incursões pelo Complexo do Alemão em busca do corpo do jornalista e de seus assassinos, afirmaram desconhecer a existência de um cemitério clandestino no alto da favela da Grota, onde encontraram restos de corpos, partes da microcâmera com uma identificação da Rede Globo, um relógio, uma corrente com um crucifixo, um facão e uma camisa. Funcionários da TV Globo confirmaram que a placa de identificação pertencia à microcâmera usada por Lopes, e que também eram dele o relógio e a corrente.

No Complexo do Alemão, composto por 12 favelas, há quatro unidades da Polícia Militar. São os chamados Postos de Policiamento Comunitário ou Destacamentos de Policiamento Ostensivo. Um deles é no alto da favela Vila Cruzeiro, onde ocorrem os bailes funk que Lopes foi investigar.

Cada favela é uma espécie de cidade. A geografia do morro, com suas ruas tortuosas, é um bom esconderijo para os criminosos. Mas a comunidade, em geral, sabe tudo o que acontece ali dentro. Informações que chegaram à polícia pelo Disque-Denúncia descreviam, por exemplo, que foram ouvidos gritos tão altos na noite em que Lopes morreu, que os moradores tiveram de fechar suas janelas para não escutá-los. Há relatos de moradores sobre “desfiles” que ocorrem por toda a favela, sob pancadas e tortura, dos “traidores” ou “bandidos” condenados pela lei do tráfico, antes de matá-los. Há notícias de que um policial foi barbaramente torturado quando foi pego infiltrado num morro.

Mesmo que o posto de policiamento esteja a uma distância grande do local onde ocorreu o baile funk, a polícia não sabia da exploração sexual de jovens e consumo de drogas no local? No cemitério clandestino da Grota foram encontradas pelo menos cinco arcadas dentárias que não conferiam com as de Lopes, além de fragmentos de ossos.

A situação é tão difícil, que em uma entrevista publicada em O Globo, em 23 de junho, o presidente da Associação de Cabos e Soldados da Polícia Militar (PM), Vanderlei Ribeiro, afirmou que existe uma determinação do comando-geral que proíbe os policiais de entrarem em 15 favelas do Rio de Janeiro, a não ser que tenham o apoio das forças de elite, como o Batalhão de Operações Especiais (Bope), da PM, e a Coordenação de Recursos Especiais (Core), da Polícia Civil.

O subsecretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Ronaldo Rangel, disse que a SIP que a polícia que fica nas unidades situadas nos morros só atua ostensivamente, ou quando há uma denúncia. Afirmou ainda que não havia indícios de que a polícia sabia do “microondas” ou do cemitério clandestino, de onde os peritos do Instituto Médico Legal conseguiram reconstituir, com os ossos encontrados, sete esqueletos que serão submetidos a exames de DNA.

A condição nas favelas levou o secretário da Segurança, Roberto Aguiar, a anunciar, em 17 de junho, que será feita a ocupação social (com postos de saúde e outros serviços) no Complexo do Alemão, começando pela Vila Cruzeiro. Disse que a favela da Grota, onde o jornalista foi assassinado, será reurbanizada, para que o local não volte a servir de cemitério clandestino para o tráfico. Aguiar se comprometeu ainda a implantar radares de solo e serviços de geólogos e arqueólogos para continuar com a busca por corpos no cemitério da Grota. Um mês depois do desaparecimento de Lopes, entretanto, o corpo do jornalista não foi encontrado, os assassinos não foram presos, e as providências de Aguiar ainda não foram implementadas.

Corrupção e impunidade favorecem a criminalidade

O assassinato de Lopes mobilizou a polícia, os políticos e os meios de comunicação graças ao poder de penetração da Rede Globo. Mas nem sempre uma morte violenta como a dele tem tanto respaldo. Outros jornalistas brasileiros assassinados no exercício da profissão não tiveram tanto destaque e muitos dos inquéritos que apuram suas mortes permanecem parados.

No Rio de Janeiro, há duas outras mortes de jornalistas sendo investigadas. O caso de Mário Coelho Filho, do jornal A Verdade, assassinado em agosto de 2001, em Magé, na Baixada Fluminense, segundo o delegado Carlos Henrique Machado, da delegacia de Homicídios, está em andamento. O titular da delegacia, Paulo Passos, admite, no entanto, que o inquérito sobre o assassinato de Reinaldo Coutinho da Silva, do Cachoeiras Jornal, em agosto de 1995, em Cachoeiras de Macacu, não tem como ir adiante, porque não há novas testemunhas e o fato ocorreu há muito tempo.

A advogada Cristina Leonardo, coordenadora da organização não-governamental Centro Brasileiro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, no Rio de Janeiro, lembra que a morte de Lopes se difere dos demais casos que permanecem impunes por uma questão básica: “Normalmente, a delegacia e a Justiça, para dificultar as investigações quando a pessoa está morta e os assassinos sumiram com o corpo, dizem que, se não tem corpo, não tem crime”. No dia 9 de junho de 2002, uma semana depois do desaparecimento do jornalista, o chefe de polícia, Zaqueu Teixeira, anunciou oficialmente que Lopes estava morto, ainda que não tivesse sido encontrado seu corpo. Os policiais se basearam em indícios presentes nos depoimentos de presos que negaram a participação no crime, mas descreveram como ele teria ocorrido. “Muitas vezes, um homicídio não precisa ser confirmado com a descoberta do corpo”, justificou o delegado Carlos Henrique Machado, da Delegacia de Homicídios.

Somente no dia 11, por uma denúncia anônima, a polícia descobriu num cemitério clandestino na Favela da Grota os restos da microcâmera da TV Globo e fragmentos de ossos que foram encaminhados para exame de DNA. Os peritos da Universidade Federal do Rio de Janeiro confirmaram o 5 de julho que o exame de DNA comprovou serem do Lopes os restos mortais encontrados. O jornalista foi enterrado o 7 de julho no Cemitério Jardim da Saudade, em Sulacap. Além de amigos e parentes, a governadora Benedita da Silva e o chefe de Polícia Civil, delegado Zaqueu Teixeira, acompanharam a cerimônia.

O Rio de Janeiro é pródigo em assassinatos impunes. Em 1993, ocorreu a chacina da favela de Vigário Geral. Era uma vingança pela morte de policiais comandada pelo traficante Elias Maluco. Leonardo é advogada dos familiares dos mortos na chacina e diz que há dois anos não há julgamento dos culpados, porque a defesa bloqueia a Justiça, mudando de advogados - e a cada mudança, o novo advogado diz que precisa de mais tempo porque não conhece o caso -, pedindo novas diligências, convocando policiais que não vão depôr e, principalmente, ameaçando testemunhas.

A pressão para apurar a morte de Lopes provocou críticas da polícia. “Há 15 dias morreu um policial civil às sete da noite, tinha 33 anos e também estava trabalhando. A Rede Globo deu uma nota pequena. Estão colocando Tim Lopes como deus, mas há outros crimes. Nós, policiais, também somos vítimas e não gostamos disso - há muita colaboração das organizações não-governamentais, mas quando um policial é morto nestas circunstâncias, não vejo ninguém no enterro, nem dando apoio à família”, comentou o delegado Carlos Henrique Machado.

Estado Paralelo

O fato de Lopes ter sido preso e “julgado” por traficantes por ter invadido a área deles sem permissão, e a descoberta de um cemitério clandestino no morro do Complexo do Alemão levaram as autoridades federais a declarar que existe um Estado paralelo nas favelas do Rio de Janeiro, sob o comando dos narcotraficantes. As declarações geraram uma troca de acusações entre representantes dos governos estadual e federal sobre de quem é a responsabilidade pelo Rio de Janeiro ter chegado a essa situação.
O chefe de Polícia Civil do Rio de Janeiro, Zaqueu Teixeira, contestou: “Não há Estado paralelo, o que existem são zonas conflagradas e amarras legais que impedem a polícia de agir: para prender alguém, é preciso ter um mandado de busca, que demora a ser expedido”. O subsecretário de Segurança Pública, Ronaldo Rangel, lembrou que as armas e as drogas dos narcotraficantes vêm de outros países, e quem controla as fronteiras é o Governo Federal.

O juiz aposentado Walter Maierovitch, que preside o Instituto Brasileiro Giovanni Falcone de Ciências Criminais e dá cursos de especialização sobre crime organizado e drogas, analisa a situação do Rio de Janeiro de uma forma mais ampla: “Não estamos falando de quadrilhas e bandos, são associações de delinqüentes especiais que atentam contra o estado de direito e contra os direitos e as garantias individuais, o que representa uma autêntica situação de segurança nacional - portanto, de competência do Governo Federal”. Maierovitch compara essas associações às máfias, porque têm controle territorial e social.

Uma opinião que chama a atenção é a do deputado estadual atualmente sem partido, Hélio Luz, que comandou a Polícia Civil no Rio de Janeiro de 1995 a 1997 e ousou enfrentar o poder dos narcotraficantes. Segundo Luz, o Complexo do Alemão existe porque o Estado brasileiro necessita dele para se manter no poder, e para manter a população de excluídos nos morros. Luz critica inclusive o papel da igreja e de algumas instituições do Terceiro Setor que, a seu ver, atuam nas favelas ajudando a acalmar a situação, sem questionar a má distribuição de renda que é a verdadeira causa da miséria das favelas. De uma forma geral, para o cidadão comum, a criminalidade sempre existiu. A diferença é que agora está chegando à classe média.

Na visão de Luz, Lopes foi morto por responsabilidade de um Estado violento e corrupto, que não tem controle de suas instituições internas e dos seus poderes, e cujo dever de casa deveria ser, primeiro, manter o controle de sua polícia para baixar os índices de criminalidade.

A morte de Lopes também serviu de pretexto para o presidente do Tribunal de Justiça, Marcus Faver, criticar a burocracia que impede o exercício da Justiça e propicia que traficantes como Elias Maluco sejam soltos. “No Brasil, os direitos e as garantias são levados a extremos tais, que criam barreiras”, reclama o desembargador. “Por que o criminoso tem que estar presente nas audiências, não poderia estar somente seu advogado?”. Faver lembra ainda que há juízes que acumulam duas Varas Criminais e há Varas sem juízes. A solução, a seu ver, passa por uma reforma no processo penal e na gestão administrativa.

Em 11 de junho de 2002, o Senado Federal aprovou algumas mudanças no Código de Processo Penal com o objetivo de evitar casos como o de Elias Maluco. As mudanças ainda dependem da aprovação da Câmara dos Deputados. Incluem, por exemplo, a obrigação de um juiz justificar sua decisão para conceder o habeas corpus anulando a decretação de uma prisão preventiva. E prevêem a possibilidade de o juiz interrogar réus à distância, através de circuitos de televisão, para evitar constrangimentos de testemunhas.

A impunidade, no Brasil, algumas vezes está relacionada ao poder eleitoral, lembra Tânia Maria Salles Moreira, 50 anos, procuradora de Justiça da 7º Câmara Criminal do Rio de Janeiro. Durante 12 anos, ela atuou como promotora numa das regiões mais violentas do Rio, a Baixada Fluminense. No Rio de Janeiro, quando os candidatos querem entrar nas favelas, pedem permissão aos traficantes, que são os maiores empregadores nos morros, e por isso têm poder de mando. “A maioria dos votos vêm de comunidades sob a ordem desses senhores”, salienta a procuradora.

No Rio de Janeiro, ser jornalista é profissão de risco

“A morte de Tim foi um atentado eficaz. Hoje, pode-se imaginar que todas as redações estejam com medo e vai dar trabalho elaborar uma estratégia de cobertura que enfrente o medo e não nos cale. Somos jornalistas, queremos a verdade”, diz Kamel, da TV Globo.

O jornalista Marcelo Beraba, da sucursal da Folha de São Paulo no Rio de Janeiro e presidente do Comitê de Liberdade de Expressão da Associação Nacional de Jornais (ANJ), propõe que a imprensa carioca se una para dar continuidade ao trabalho iniciado por Lopes. “Temos que ir até o fim na morte do Tim e no que ele estava investigando”, afirma.

Num Estado em que a população de classe média e alta vive cercada por favelas, e em que os enfrentamentos entre polícia e bandidos são diários, é impossível ignorar que o Brasil vive uma guerra civil. Identificar quem são os traficantes de drogas e armas, os corruptos e os corruptores, em qualquer lugar do mundo, é sinônimo de perigo. No Rio de Janeiro, quem já esteve sob a mira dos traficantes fica marcado para sempre. “Ninguém pode falhar nesse momento, isso custa a vida”, lembra Aldir Ribeiro, 49 anos. Hoje ele dirige um programa na Televisão Educativa do Rio de Janeiro. Mas, quando era repórter do Documento Especial da Televisão Manchete, fazia matérias investigativas e recebeu várias ameaças. “Todo dia eu pensava em parar. Você passa a não ter mais paz, acha que todo mundo está te olhando”.

João Antônio Barros, 39 anos, de O Dia, teve sua cabeça a prêmio depois que passou um tempo vivendo dentro da cadeia Bangu 3, sem se identificar como jornalista. Fez uma reportagem sobre corrupção no sistema penitenciário e soube depois que alguém propôs pagar R$ 50 mil para que ele fosse morto. “Medo a gente tem todo dia, mas, se não fizer as matérias, deixa de trabalhar”, reconhece. “Não consigo imaginar jornalismo sem denúncia”. Barros constata, porém, que os jornalistas mais jovens não sobem os morros do Rio de Janeiro como os mais experientes faziam no início da carreira.

O assassinato de Lopes deve servir como exemplo, diz Marcelo Leite, de O Dia. “Temos que ir atrás dos “Elias Maluco” não só do tráfico, mas do Judiciário, da Polícia e da Política”, encara. Leite conta que havia recebido a mesma denúncia dos moradores da favela da Vila Cruzeiro que estava sendo investigada por Lopes, uns 15 dias antes de saber do desaparecimento do colega.

“O assassinato de Tim Lopes foi uma morte anunciada”, acredita a jornalista Cristina Guimarães, 38 anos, que vive atualmente escondida. Em outubro de 2001, Cristina pediu seu desligamento da TV Globo, alegando que a empresa não lhe ofereceu proteção quando foi ameaçada de morte. Ela era co-autora da reportagem “Feira das Drogas”, feita junto com Lopes e outros dois jornalistas, e veiculada no Jornal Nacional de agosto de 2001. A repórter entrou nas favelas Rocinha e Mangueira, no Rio de Janeiro, com uma microcâmera escondida na bolsa para mostrar o tráfico de drogas. Por causa da reportagem, traficantes da Rocinha foram presos.

Cristina foi informada que pessoas estavam rondando seu local de trabalho e que uma delas disse que os traficantes estavam oferecendo R$ 20 mil por sua cabeça. Cerca de dez dias depois, ao ler os jornais, soube que um funcionário do departamento de Esportes da TV Globo havia sido seqüestrado por traficantes da Rocinha, e que estes queriam saber quem era o autor da reportagem “Feira das Drogas”. O fato foi registrado pela 15ª DP.

Também passou a receber telefonemas anônimos. Angustiada, com medo, resolveu se afastar do trabalho. Entrou com uma ação contra a empresa, desligou-se do trabalho em novembro de 2001, e procurou a Anistia Internacional para ajudá-la a sair do país.

Sua advogada, Cristina Leonardo, pediu em junho de 2002 ao Secretário de Segurança Pública e ao superintendente da Polícia Federal para que o caso de Cristina Guimarães seja investigado. A advogada teme pela vida da jornalista e que a morte de Lopes esteja associada às ameaças recebidas por sua cliente.

Uma ex-funcionária que fazia o programa Linha Direta também vive escondida e com medo. O programa mostra crimes que continuam impunes, os reconstitui, dá nome aos suspeitos de terem cometido os crimes e pede ajuda da população para encontrá-los. A produtora, que pediu para não se identificar, disse que usava câmera escondida e que foi pressionada mais de uma vez para fazer matérias arriscadas.

“Desde que entrei no Linha Direta, eu recebia ameaças e brincava com as pessoas, dizendo que tinham que entrar na fila para me matar. Nunca dei bola. No único momento em que tive medo, não consegui mais ser como os diretores da TV queriam que eu fosse”, relata. A gota d’água aconteceu quando começou a apurar a atuação de traficantes e de um grupo de extermínio da Baixada Fluminense. A própria promotora que investigava o caso alertou a jornalista que ela se cuidasse, porque já tinha sido ameaçada e que, com a reportagem, poderia correr risco de vida.

Um dia, ao retornar para a sede da televisão, a jornalista percebeu um carro, com pessoas armadas, na frente. Pediu proteção, mas o diretor de programação disse que não havia motivo para tanto, que isso poderia alarmar outros repórteres.

Questionado sobre casos como o desta produtora, César Seabra, editor regional da TV Globo no Rio de Janeiro, garantiu: “Quando necessário, a empresa dá segurança”. Luis Erlanger, diretor da Central Globo de Comunicação, lembra que vários jornalistas da TV Globo foram enviados para outros Estados ou para fora do país por estarem em situações de risco. Em alguns casos, são contratados seguranças particulares para acompanhar o profissional ameaçado. No caso de Cristina Guimarães, ele foi enfático: "Se tivéssemos conhecimento, teríamos tomado providências". Diante da ação judicial de Guimarães, o juiz aceitou a sua saída da Globo, mas não acolheu o pedido de proteção.

Um exemplo de dignidade no Jornalismo

Tim Lopes era uma unanimidade entre os colegas. No dia em que foram encontrados os fragmentos de ossos, uma corrente (mais tarde identificada como sendo do jornalista) e pedaços da microcâmera com a plaqueta da Rede Globo, os fotógrafos e repórteres que estavam no local deram as mãos em torno da cova e rezaram, em prantos. Mais de um ato público foi organizado pelo Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro e pela Associação Brasileira de Imprensa, no centro do Rio de Janeiro, exigindo das autoridades providências para encontrar o corpo de Lopes e os culpados de sua morte. Os colegas da TV Globo encerraram uma edição do principal noticiário da emissora, o Jornal Nacional, vestidos de preto, numa salva de palmas, em homenagem a ele.

Tantas manifestações se devem ao fato de que Lopes, conhecido por seu jeito humilde e brincalhão, era admirado por suas reportagens brilhantes e pela coragem de trazer para o asfalto a realidade das favelas que ele, criado no morro da Mangueira, filho de uma família pobre, conhecia como ninguém. “O Tim era o que se tem de mais nobre na profissão, sempre na busca por justiça, por ajudar as pessoas que precisam, pelo furo, pelo diferente”, recorda César Seabra, 41 anos, da editoria regional da TV Globo no Rio de Janeiro.

O fotógrafo Marcos Tristão, que trabalhou com o jornalista em O Dia, brinca que é possível ver vários Tim Lopes passeando nas ruas do Rio de Janeiro, porque ele tinha a cara do carioca. Mulato, nos últimos tempos dono de uma barriga que lhe rendeu o apelido de “Véio Zuza”, Lopes portava um sorriso amplo e o jeito de quem podia se travestir do que quisesse. Foi assim que se passou por mendigo para se aproximar dos meninos de rua e retratar sua realidade numa reportagem no Jornal do Brasil. Noutra matéria, virou operário de estrada, e em outra, era um sem-teto relatando suas experiências para O Dia.

“Sempre procurei investigar, no fundo, no fundo, a alma das pessoas”, disse uma vez. Por isso, não registrava apenas as mazelas do povo. Descobriu talentos que colocou na televisão, e incentivou, por meio de suas reportagens, projetos sociais como o dos pré-vestibulares comunitários para afro-descententes, na região da Baixada Fluminense. Ponderado, quando se tratava de discutir uma questão delicada, começava a frase do mesmo jeito: “O bom senso diz que...”

Numa das primeiras reportagens que fez na TV Globo vestiu-se de Papai Noel e mostrou os sonhos da população. Internou-se numa clínica de recuperação para dependentes químicos e mostrou os dramas vividas pelos doentes. Para os telespectadores da maior rede de televisão do país, no entanto, o nome de Lopes era pouco conhecido porque ele se dedicava mais a fazer o trabalho de produção jornalística: por trás da câmera, sem mostrar o rosto, conseguia mostrar o que todo mundo desconfiava ou sabia, mas que ninguém tinha coragem de denunciar. Graças a essa audácia, foi premiado, junto com a equipe, pela reportagem “Feira de Drogas”, quando gravou com uma microcâmera o livre comércio de drogas no Complexo do Alemão, numa favela próxima à Vila Cruzeiro, local onde foi morto.

Numa conversa com estudantes de Jornalismo disse uma vez que, em busca da notícia, na hora em que estava apurando os fatos conseguia se manter numa frieza absoluta, depois é que ficava assustado. Na sua última reportagem investigativa, porém, seu instinto lhe dizia que, desta vez, os riscos eram muito grandes. Na semana antes de desaparecer, ele chegou a comentar com a mulher, Alessandra Wagner, que a “barra” na Vila Cruzeiro era mais perigosa do que na “Feira de Drogas” e que iria se expôr muito. Começava a pensar em não fazer mais esse tipo de reportagem. Já havia acertado que, depois de encerrar este trabalho, iria acompanhar um caminhoneiro em sua viagem, numa matéria de comportamento para o programa Globo Repórter.

Gaúcho de nascimento, mas criado no morro da Mangueira, no Rio de Janeiro, Lopes mantinha o gosto pelo samba e carnaval, e desfilava no bloco “Simpatia é quase amor”. Lia muito. “Ele sempre falava em escrever um romance baseado nas experiências que teve como jornalista”, lembra o advogado André de Souza Martins, concunhado de Lopes. Desde 1999, estava escrevendo, com o amigo e jornalista Alexandre Medeiros, o livro “Eu sou o samba”, com perfis de personagens do samba carioca desconhecidos da maioria da população.

O funk na visão de Tim Lopes

Em 1994, Lopes escreveu uma série de reportagens para o jornal O Dia, do Rio de Janeiro, sobre os bailes funk. A série ganhou um prêmio como melhor reportagem publicada no jornal naquele ano. No mesmo período, Lopes passou a escrever uma coluna semanal, às sextas-feiras, no caderno de Cultura, com a programação e destaques de personagens do universo funk. Desde então, os bailes mudaram, assim como o perfil dos traficantes nos morros cariocas. Este ano, a denúncia não se centraria nos bailes, mas no forte armamento dos jovens que o freqüentam, no consumo de drogas e na exploração sexual de menores de idade. Ironicamente, oito anos depois das primeiras reportagens, o jornalista voltou a um baile funk e deparou com a própria morte.

Em 27 de fevereiro de 1994, ele denunciava outro tipo de violência associada aos bailes:

“Aqui, embaixo da linha do Equador, nos becos do Complexo do Alemão, o pancadão funk tem outras assinaturas, mas também está associado ao prazer, ao desabafo e à violência. Mas funk não é só música. É um modo de viver. (...) São os donos da rua, do bairro, da cidade, dos seus narizes. Estão sempre prontos a mostrar que podem vencer qualquer embate, encarar qualquer parada. Assim explodem as brigas, os confrontos entre galeras. Nos últimos três anos, mais de 50 jovens morreram nos combates entre funkeiros, centenas saíram feridos. O mundo funk guarda espaço para paus, pedras e armas de fogo, abriga tribos nômades que espalham alegria e terror. É um ritual de vida e morte.”

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